O IMPACTO DA REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA NA ECONOMIA VERDE
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Por Bruno Kono, Gabriel Natário, Fernanda Sequeira, Gabriela Savian, Mariceli Moura, Raquel Poça, Rafaela Reis e Ricardo Azevedo
Com quase 50% das emissões de gases de efeito estufa associadas a mudanças no uso da terra, é fundamental discutir como a promoção de uma bioeconomia sustentável pode transformar a realidade amazônica e garantir um futuro mais verde e justo
DO QUE TRATA O ARTIGO
Os autores analisam a relação entre regularização fundiária e bioeconomia na Amazônia brasileira, mostrando como a insegurança fundiária contribui para o desmatamento e altas emissões de gases de efeito estufa. A regularização é essencial para garantir segurança jurídica às comunidades locais e indígenas, assim como para os agricultores familiares
e produtores rurais para atrair investimentos em práticas sustentáveis.POR QUE ISSO IMPORTA
A insegurança na posse da terra resulta em desmatamento e exploração ilegal, afetando tanto o meio ambiente quanto as comunidades locais. Promover uma bioeconomia sustentável pode gerar novas oportunidades econômicas e empregos verdes, incentivando práticas que respeitem o ecossistema.
NA AMAZÔNIA BRASILEIRA, MUDANÇAS NO USO E COBERTURA do solo associadas ao desmatamento da vegetação nativa e degradação das florestas têm consequências graves para as questões climáticas e a biodiversidade em escalas regionais e globais. O desmatamento resulta de fatores inter-relacionados, incluindo questões socioeconômicas, políticas de uso da terra, desenvolvimento de infraestrutura e demandas do mercado global. Segundo dados do Sistema de Estimativas de Emissões e Remoções de Gases de Efeito Estufa (Seeg), 49% das emissões brasileiras estão associadas à mudança do uso da terra.1 Nos estados amazônicos, a quase totalidade tem relação com o uso daterra ou com a agropecuária.
A posse da terra, o uso do solo e as respostas às mudanças climáticas estão intimamente interligadas, como aponta o relatório “Mudança do Clima e Terra” de 2019 do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC – na sigla em inglês).2 Em estudo do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam),3 observou-se que o risco potencial para o aumento de áreas desmatadas está associado a dois fatores importantes: os ciclos macroeconômicos e a governança na forma de designação de florestas públicas para áreas protegidas. Tais fatores podem influenciar as decisões de uso da terra, a alocação de recursos e até mesmo o ambiente regulatório.
A capacidade de implementação de estratégias de resposta aos desafios climáticos e de fazer investimentos futuros em mitigação e adaptação é efetada de maneira direta pelo acesso e uso da terra. Nisso, a segurança jurídica desempenha papel fundamental para fortalecer essas capacidades e facilitar o acesso às oportunidades emergentes na transição para o desenvolvimento de baixo carbono. A garantia de posse segura, em especial para as populações indígenas e comunidades locais que operam sob regimes de posse consuetudinária ou coletiva e, deve estar resguardada e priorizada no desenho dessas políticas de transição econômica.
A regularização fundiária na Amazônia brasileira enfrenta desafios complexos que requerem uma abordagem intersetorial para a sua efetiva implementação. As ações de regularização devem ser prioritárias na formulação e execução de políticas públicas voltadas ao desenvolvimento socioeconômico da Amazônia.4 Afinal, a segurança jurídica das propriedades rurais, a redução da violência no campo e a operacionalização de estratégias de ordenamento territorial e desenvolvimento rural sustentável podem garantir a criação de um ambiente seguro para investimentos, escalando caminhos para conciliar produção com conservação ambiental ao crescimento econômico necessário para a sociedade.
Os obstáculos à efetiva implementação do ordenamento territorial e da política de regularização fundiária na região são marcados por componentes relacionados à infraestrutura física, capacidades institucionais, governança e contextos locais de disputas e conflitos agrários. Esse contexto, associado às diferentes legislações vigentes, baixo investimento tecnológico e histórico territorial, dá dimensão à complexidade regional e demonstra a necessidade de novos arranjos para a sua implementação.
A dinâmica da ocupação das terras públicas envolve questões preocupantes, como a relação de ocupações ilegais de áreas públicas não destinadas e, em alguns casos, crime organizado, tráfico de drogas e garimpo de ouro, por exemplo. A Amazônia brasileira tem ainda 56,5 milhões de hectares de florestas públicas não destinadas, área equivalente ao tamanho da Espanha.5 Para uma redução definitiva da grilagem e da pressão sobre essas florestas, é fundamental que os governos reforcem esforços nos processos de destinação dessas áreas. O sucesso do ordenamento territorial depende da destinação de florestas públicas ainda não destinadas a categorias de conservação, porque só assim é possível combater o desmatamento, a grilagem e a exploração ilegal de recursos naturais. A destinação adequada de áreas públicas configura-se como estratégia essencial para proteger
as florestas, garantir o uso sustentável dos recursos e promover o desenvolvimento inclusivo das comunidades locais.6
Existe ainda a demanda de regularização fundiária das áreas rurais individuais, sejam elas em assentamentos rurais, pequenas propriedades da agricultura familiar, ou propriedades maiores (médias e grandes). Pelos dados registrados no Incra, outros 16 milhões de hectares estão aptos para regularização individual, sendo que 6,3 milhões correspondem a propriedades pequenas.7 Para um ecossistema de ordenamento territorial baseado em fatores atuais de tecnologia e inovação deve-se considerar que a plena implementação só acontecerá quando forem estabelecidos um conjunto de práticas para promoção de arranjos de governança capazes de direcionar de maneira eficiente a adoção de medidas estratégicas e políticas públicas duradouras para a gestão territorial. A governança efetiva requer melhorias contínuas para assegurar o uso sustentável e a preservação dos territórios. Portanto, investimentos em ferramentas de gestão devem estar ancorados em uma política fundiária permanente como política de Estado, com mecanismos e instrumentos de governança fundiária transparente, justa e equitativa e que fortaleçam a articulação institucional envolvendo governo federal e órgãos de terra estaduais e os espaços de participação social. A intersetorialidade na sua implementação deve articular conhecimentos e experiências no planejamento, na operação e na avaliação das ações para que sejam alcançados resultados integrados no enfrentamento de situações com alta complexidade visando o, desenvolvimento social e à melhoria das condições de vida.
No contexto amazônico, para além dos investimentos em infraestruturas e tecnologias, a ausência de uma estratégia de implementação ajustada ao cenário regional e interconectada com as demais políticas públicas, como as relacionadas à conservação ambiental, fomento à produção sustentável e desenvolvimento regional, ameaça
sua ampla efetividade.
A regularização fundiária é eixo estruturante para a implementação da transição para um novo paradigma de desenvolvimento socioeconômico, contribuindo de maneira a ancorar visão de longo prazo através de programas como agropecuária de baixas emissões, mercado de carbono, bioeconomia e valorização dos ativos ambientais.
Para fortalecer as relações intersetoriais na criação de um ecossistema de governança fundiária, é necessário desenvolver instrumentos de coordenação que articulem setores, como um cadastro unificado, bases de dados integradas, sistemas de informação compartilhados e estratégias conjuntas de avaliação e monitoramento. Além disso, é fundamental ter um marco regulatório robusto e ajustado entre os setores, assegurando a sinergia entre políticas, planos e programas estratégicos para alcançar resultados de longo prazo.
O potencial produtivo da biodiversidade presente na região deve atuar para impulsionar a criação de produtos e serviços que agreguem valor econômico sem comprometer a integridade dos ecossistemas. Produtos derivados de plantas medicinais, cosméticos, alimentos orgânicos e até mesmo inovações em biotecnologia são exemplos de
como a riqueza biológica da região pode ser transformada em cadeias produtivas sustentáveis.
No bojo da implementação de modelos de desenvolvimento sustentável, como solução para desafios como mudanças climáticas, segurança alimentar e perda de biodiversidade, a bioeconomia busca valorizar a biodiversidade amazônica, promovendo o desenvolvimento de cadeias produtivas inovadoras que combinam práticas tradicionais e modernas, criando valor econômico enquanto conserva o meio ambiente e fortalece as comunidades locais.
Ao unir as premissas de desenvolvimento econômico e social para a região com sustentabilidade e resiliência climática, torna-se uma estratégia de descarbonização da economia. O fim do desmatamento, o fortalecimento de práticas culturais locais milenares das populações tradicionais da região, a diversificação da produção e a valorização da biodiversidade, assim como a distribuição justa de benefícios e tomada de decisão com as comunidades locais, são considerados pilares imprescindíveis pelo Ipam para garantir a sustentabilidade ambiental, econômica e social.
Com isso, a sociobioeconomia, conceito mais aprofundado, representa um novo paradigma econômico e produtivo que vai além da produção sustentável, integrando e respeitando os conhecimentos tradicionais associados à produção, fabricação e uso de produtos oriundos da floresta.8 O acesso ao patrimônio genético e ao conhecimento tradicional que estão associados ao território. Assim como a consolidação de um mercado de créditos de carbono com alta integridade socioambiental requer a garantia da segurança jurídica das terras, como forma de garantir salvaguardas socioambientais em ações relacionadas à economia de baixo carbono. A integração da bioeconomia com a regularização fundiária é essencial para assegurar que as populações locais, especialmente comunidades indígenas e ribeirinhas, possam acessar os benefícios dessa nova economia.
Regularizar as posses não só assegura a integridade dos créditos de carbono, como também combate a “grilagem” de terras, promovendo um mercado mais justo e sustentável. Com a aplicação de práticas rigorosas de rastreabilidade fundiária, é possível eliminar fraudes e garantir que os benefícios sejam direcionados a quem realmente protege a floresta.
U M A R R A N J O D E P O L Í T I C A S P Ú B L I C A S NA ÚLTIMA DÉCADA, TEM-SE BUSCADO DESENVOLVER sistemas ágeis visando à análise processual, aprimoramento de normativos e uso de processos mais simplificados na Amazônia Legal. Esse cenário positivo cria ambiente favorável à construção de uma agenda conjunta para o desenvolvimento de políticas públicas estruturantes (ver quadro na pag seguinte*).
As decisões estratégicas adotadas nos últimos anos refletem os avanços nas regularizações fundiárias e se estendem para os diferentes públicos, como agricultores familiares, produtores rurais, extrativistas e quilombolas, os quais acessam a política fundiária por diferentes modalidades, sejam elas individuais ou coletivas. A segurança jurídica, em especial de áreas ocupadas por populações tradicionais, desempenha um papel crucial junto ao Plano Estadual de Bioeconomia, pois garante que as comunidades que utilizam recursos da floresta tenham a segurança necessária para desenvolver suas atividades de maneira sustentável e acessar mercados globais.
Conectado à estratégia de valorização da sóiobiodiversidade, a criação do Parque de Bioeconomia da Amazônia é mais um passo que exemplifica como essa transição pode acontecer de forma prática. O Pará tem se posicionado como um líder na promoção de políticas públicas que integram a regularização fundiária e ambiental com o fortalecimento da bioeconomia, vislumbrando ainda o mercado de carbono enquanto potencial captação de financiamento climático e mecanismo financeiro de fomento à conservação florestal e produção sustentável. Essa abordagem visa não apenas à conservação, mas também à criação de uma economia inclusiva que ofereça oportunidades reais de desenvolvimento para as populações locais.
Essa estratégia também pavimenta o caminho para a criação de arranjos pré-competitivos, que permitem a colaboração entre diferentes atores, como empresas, governos e comunidades locais, em prol de objetivos comuns de desenvolvimento sustentável. Esses arranjos criam um ambiente propício para a atração de investimentos, o que potencializa a geração de empregos verdes e o aumento da renda das populações locais. Ao fortalecer essa rede de cooperação e promover a bioeconomia, o Estado não apenas estimula a transição para uma economia de baixo carbono, como também contribui para uma transformação econômica inclusiva e resiliente, ancorada na conservação ambiental e proteção do patrimônio genético e conhecimento tradicional associado.
Para garantir resultados e impactos de longo prazo, é fundamental reforçar a governança de todas essas iniciativas. A criação de mecanismos claros de monitoramento, transparência e participação social é essencial para consolidar os arranjos pré-competitivos e assegurar que os investimentos, políticas públicas e ações voltadas à bioeconomia e à conservação ambiental sejam efetivos. Uma governança robusta permitirá que as decisões sejam tomadas de forma coordenada, garantindo a continuidade das ações, o cumprimento das metas climáticas e a geração de benefícios sustentáveis para as futuras gerações, consolidando um modelo de desenvolvimento inclusivo e duradouro. Com vistas às oportunidades da COP 30 que se aproxima, este é um importante legado que se estrutura para toda a Amazônia.
QUADRO
EM ÂMBITO FEDERAL, desde 2023 foram retomadas estratégias federais de ordenamento territorial através da reestruturação de órgãos públicos direcionadores, como o Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima (MMA) e do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar (MDA), nos quais estão ancoradas instâncias de elaboração, implementação e acompanhamento das políticas públicas concernentes ao tema. Neste foi retomada a Câmara Técnica de Destinação de Terras Públicas (Decreto Federal nº 11.688/2023), responsável pela interlocução com diferentes órgãos e agentes governamentais para a destinação de glebas e florestas.
Em escala regional, o Consórcio Interestadual de Desenvolvimento Sustentável da Amazônia Legal, autarquia representativa dos nove estados amazônicos, busca ser referência em articulação, estratégia e governança para trazer o pleno desenvolvimento socioeconômico e ambiental da região até 2030. Para isso, tem quatro alicerces de atuação: economia verde, competitividade e inovação; integração regional; gestão; e serviços públicos e governança territorial e ambiental. Este último eixo abrange estratégias para promoção do planejamento, ordenamento e gestão do território; modernização e eficiência da gestão, normas, procedimentos e processos ambientais. O consórcio busca, através de troca de experiência e interlocução entre os diferentes atores, estabelecer segurança jurídica, territorial e ambiental adequada para promover a implantação de projetos, obras e atividades públicas e privadas.Nos estados amazônicos emergem experiências exitosas de implementação e operacionalização da política fundiária que apontam caminhos possíveis para uma governança fundiária plena. A articulação entre políticas públicas de desenvolvimento sustentável, aliada a uma economia de baixo carbono, é estratégia que endereça as demandas socioeconômicas aos desafios da região no que tange à redução do desmatamento e consolidação de um ambiente com segurança jurídica para investimentos sustentáveis. Nesse nível subnacional, destaca-se o desenvolvimento de uma arquitetura estratégica de políticas, planos e programas no estado do Pará, trazendo em seu escopo a conciliação das agendas fundiária, ambiental e econômica alinhada a uma visão de longo prazo de desenvolvimento socioeconômico de baixas emissões. Desde 2019, com a publicação do Plano Estadual Amazônia Agora (PEAA) (Decreto Estadual no 941/2020), o estado tem conduzido a implantação de um conjunto de ações orientadas pela governança climática da Política Estadual de Mudanças Climáticas (Pemc) (Lei Estadual no 9.048/2020), para a redução de emissões de gases de efeito estufa (GEEs). Instrumentos operativos como o Programa Regulariza Pará (Decreto Estadual no 2745/2022), o Territórios Sustentáveis (Decreto Estadual no 2.744/2022) e o Plano Estadual de Bioeconomia (Decreto Estadual no 2.746/2022) são exemplos de programas que visam integrar a agenda de ordenamento territorial associado ao cumprimento das metas climáticas ao desenvolvimento sustentável.
Posto de forma transversal, o ordenamento territorial (fundiário e ambiental) demonstra que as diretrizes adotadas pelo Pará na execução da política agrária colocam a governança fundiária como plataforma político-estratégica de atuação. Destaca-se o Instituto de Terras do Pará – Iterpa com avanços no desenvolvimento e incorporação de capacidades e conhecimento organizacional, mapeamento e ajustes dos fluxos e processos executados como maneira de garantir a harmonização legislativa e ações coordenadas às ações realizadas, com vistas à eficiência dos resultados. Os resultados alcançados se consolidam na titulação de mais de 31 territórios quilombolas até agosto de 2024, o que beneficiou mais de 2.600 famílias. Durante a gestão 2019-2024, o Iterpa já identificou, arrecadou e matriculou mais de 11 milhões de hectares de terras devolutas que passaram a incorporar o patrimônio público do estado. Tudo isso contribui para postular o Pará como referência para o Brasil, credenciando também seu protagonismo na agenda internacional. As políticas públicas em curso reforçam a importância da regularização fundiária como um pré-requisito para a implementação de Além disso, criam as condições necessárias para que o estado se torne um polo de referência em sustentabilidade e inovação, oferecendo aos investidores oportunidades em mercados de carbono, produtos da biodiversidade e inovação em tecnologias sociais. Em última análise, esse modelo de desenvolvimento pode contribuir para uma transição econômica na Amazônia, ciclo virtuoso de desenvolvimento sustentável.
OS AUTORES
- BRUNO KONO é presidente do Instituto de Terras do Pará (Iterpa) e coordenador da Câmara Setorial de Governança Fundiária.
- GABRIEL NATÁRIO é coordenador de regularização fundiária urbana do Iterpa.
- FERNANDA SEQUEIRA é procuradora do estado e diretora jurídica do Iterpa.
- MARICELI MOURA é diretora de gestão de desenvolvimento agrário e fundiário (Deaf) do Iterpa.
- RICARDO AZEVEDO é procurador do Iterpa e coordenador da mesa quilombola.
- GABRIELA SAVIAN é diretora adjunta de Políticas Públicas do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam).
- EDIVAN CARVALHO é pesquisador e coordenador estadual do Ipam no estado do Pará.
- RAQUEL POÇA é analista de pesquisa e coordenadora de projetos do Ipam.
- RAFAELA REIS é analista de pesquisa e coordenadora de projetos do Ipam.
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