Que instituição financeira aceitaria em garantia matrícula sem registro anterior? Por Elder Jacarandá. GEOCRACIA

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A intersecção entre conservação ambiental e desenvolvimento econômico é um desafio contemporâneo que envolve múltiplos aspectos jurídicos, sociais e econômicos, particularmente em regiões com vastos recursos naturais, como ocorre no estado do Mato Grosso. A questão do registro imobiliário e da regularização fundiária acaba por se tornar um desafio para o desenvolvimento agrícola e a conservação de áreas protegidas

Para Elder Jacarandá, advogado público do Instituto de Terras de Mato Grosso (Intermat), o contexto em Mato Grosso revela um quadro onde conflitos de uso da terra e a implementação de políticas públicas colidem frequentemente, de forma a trazer uma visão que ele denominou de “além-título”. Este cenário torna-se ainda mais desafiador quando é acompanhado por legislações e regulamentações que nem sempre acompanham a realidade no terreno, resultando em desafios significativos para a gestão ambiental e a regularização fundiária. Este é o tema central explorado na entrevista a seguir.

Como integrar as práticas de conservação ambiental com o desenvolvimento econômico para alavancar a regularização fundiária e o suporte à agricultura familiar? Os estados do Pará e Tocantins tem exemplos interessantes, como caminha o Mato Grosso?

Talvez o caminho seja o processo harmônico entre as práticas, explico. Ainda temos resquícios negativos de unidades de conservação criadas por leis carentes de análise fundiária prévia sistematizada do território. Em Mato Grosso o Parque Estadual Serra Ricardo Franco com área de 158 mil hectares, criado em 1997 no ano de 2016 o Ministério Público Estadual denunciou que haveria prática de atividades como pecuária sem licença, desmatamento irregular e até mesmo trabalho escravo dentro da área protegida. Em 2022 houve discussão no legislativo estadual para tratar sobre as indenizações não realizadas e a exploração das áreas antes da criação do parque.

Due Diligence

Deveriam, num mundo perfeito, caminhar juntos a questão fundiária, através dos institutos de terras e cartórios e as ações administrativas do órgão ambiental, inerentes ao processo de criação das unidades de conservação e parques. Diminuiria a possibilidade dos prejuízos de quem detém a ocupação mansa e pacífica em relação à indenização das suas terras.

Costumo dizer que o desenvolvimento socioeconômico é consequência de uma regularização fundiária bem estruturada, com visão “além-título”. A titulação é apenas uma das fases da regularização e penso que, embora não seja fácil executá-la, o gestor deve pensar na titulação como instrumento de fortalecimento econômico. Nesse sentido, por que não agregar às ações prévias da titulação, como exemplo mobilização junto às comunidades rurais, ações de outras secretarias como a do meio ambiente, agricultura, assistência social, assistência técnica rural, defesa agropecuária, saúde e educação?

Os resultados contribuiriam para o ordenamento territorial, com a espacialização do território através da titulação georreferenciada, e identificariam as necessidades dos ocupantes em relação à produção agrícola e suas necessidades como cidadãos. Ajudaria a desenvolver políticas públicas sociais e econômicas com dados reais e atuais.

Em relação ao desenvolvimento econômico do agro familiar, recentemente foi aprovado projeto na ordem de 100 milhões de dólares junto ao BID – Projeto MT Produtivo que envolve: i) ações de regularização fundiária de 1.907 famílias em 35 assentamentos estaduais situados em seis municípios; ii) regularização ambiental, com emissão de CAR dos estabelecimentos de 11.000 famílias e; iii) adoção de medidas pelos produtores para reduzir a incidência de incêndios florestais e prevenir o desmatamento. Com isso, se executado, poderá inserir Mato Grosso noutro patamar econômico não somente de ser maior produtor de grãos do Brasil, será referência também na produção de alimentos provenientes da agricultura familiar.

Quais passos os estados amazônicos devem seguir para captar e utilizar efetivamente os recursos do Fundo Amazônia, considerando o interesse internacional no financiamento de ações ambientais, a fim de fortalecer a governança de terras e a regularização fundiária, contribuindo assim para o desenvolvimento sustentável e a valorização do mercado de créditos de carbono?

Primeiro passo é conhecer seu território e quem o ocupa. Se não desenvolverem políticas públicas para georreferenciar suas próprias áreas, como exigido pela lei 10.267/01, os passos serão lentos, afinal se não conhece suas áreas como poderão propor ações de desenvolvimento sustentável? Uma sugestão seria validar, por meio de seus institutos de terras, às áreas das matrículas que seriam inseridas no mercado de carbono.

Embora ainda no Brasil não haja legislação sobre mercado de carbono, temos de ser realistas que, em muitos casos, as próprias instituições financeiras envolvidas não possuem expertise para verificar se quem está ofertando uma matrícula é o detentor daquela área. Isso é complexo e muito delicado em se tratando de um mercado que envolve muitos recursos e que poderá ser desacreditado em razão de algumas exceções que capazes de ensejar insegurança quanto ao imóvel.

Em relação à governança de terras, os estados da Amazônia Legal poderiam adotar ações que já estão em execução em outros estados, como exemplo a Bahia, onde a Corregedoria da Justiça publicou o Provimento 08/2021 que trata do Inventário Estatístico do Registro de Imóveis – IERI, projeto iniciado junto ao CNJ em 2021 com objetivo de identificar sobreposição de imóveis e matrículas com coordenadas inconclusivas, dentre outros casos. Esse provimento teve como piloto outro case de sucesso aqui de Mato Grosso que é o projeto Conhecendo o Município Através do Registros de Imóveis de iniciativa do registrador Arimatéia Barbosa de Campo Novo dos Parecis. Esse projeto organiza o cadastro de todas as matrículas rurais do cartório.

Outro exemplo vem do Estado do Pará que está em fase de estruturação de uma companhia estatal que vai tratar de assuntos de crédito de carbono dentro do Sistema Jurisdicional REDD +.

Essas iniciativas impactam diretamente na governança de terras proporcionando segurança jurídica necessária para as transações do mercado de carbono.

Sobre a captação de recursos do Fundo Amazônia é necessário ter cautela especial em relação à execução dos projetos. É notório que grande parte dos recursos de projetos são devolvidos ou não desembolsados por falta ou falha na execução, em alguns casos essa dificuldade está atrelada às exigências inseridas no contrato e ainda na necessidade de alinhamento institucional para execução. Em Mato Grosso temos o único programa no Brasil voltado à regularização fundiária de assentamentos e glebas públicas estaduais e federais no bioma Amazônia com recursos do Fundo Amazônia – Programa Terra Limpo. Foi utilizado menos de 20% dos 72.6 milhões disponibilizados pelo Fundo, mesmo assim foram cumpridas parte das metas estabelecidas pelo BNDES, gestor do recurso.

Como a aprovação da Lei 12.225/2023 pode influenciar futuras políticas públicas em Mato Grosso para a regularização de terras e a promoção do desenvolvimento socioeconômico, particularmente em regiões com histórico de sesmarias não reconhecidas e com proprietários de terras com registros imobiliários precários?

Através da lei 12.225/2023, Mato Grosso tem a oportunidade de organizar seu território com informações fundiárias provenientes da boa posse mas com matrículas que não possuem, em sua cadeia dominial, alienações advindas do Estado. Isso impede a captação de recursos junto às instituições financeiras para desenvolver atividades agropecuárias dentre outras, e impactam diretamente o desenvolvimento da região.

Para se ter uma ideia sobre o tema, em 2019 durante audiência pública realizada pela corregedoria geral da justiça constatou que os 12 municípios da baixada cuiabana ocupam um território de mais de 13 milhões de hectares e parte deles têm registros em livros de sesmarias.

Independente das sesmarias há no estado muitos casos em que a cadeia dominial chega à seguinte informação: “não há registro anterior”, sem qualquer menção ao título que deu origem. A pergunta é: que instituição financeira aceitaria essa matrícula em garantia?

Para enfrentar esse impasse a lei permite ao registrador requerer junto ao instituto de terras e ao INCRA sobre impedimentos da área a ser averbada. Mas ainda falta o decreto regulamentar e normativa interna do INTERMAT para esse procedimento. Por fim, após a publicação do decreto será possível ao estado organizar a região e buscar políticas públicas de desenvolvimento com a devida segurança jurídica das ocupações.

Considerando o contexto de mudanças climáticas globais e a crescente demanda por mecanismos de compensação de carbono, de que forma a legislação recente em Mato Grosso e as iniciativas locais podem servir de modelo para outros estados brasileiros na harmonização entre conservação ambiental, regularização fundiária, e desenvolvimento econômico sustentável?

Em 2015 o governo lançou durante a COP 21 a “Estratégia PCI”: Produzir, Conservar e Incluir” visa captar recursos para Mato Grosso, buscando expandir e tornar mais eficiente a produção agropecuária e florestal, conservar a vegetação nativa, recompor áreas degradadas e incluir a agricultura familiar. Também busca reduzir emissões e capturar carbono, controlando o desmatamento e promovendo uma economia de baixo carbono.

Na esteira da conservação ambiental e regularização fundiária, em Mato Grosso algumas iniciativas estão em execução. Como exemplo o Programa REDD Early Movers – Programa REM MT, que atua em quatro subprogramas: Agricultura Familiar de Povos e Comunidades Tradicionais, Territórios Indígenas, Produção Sustentável e Fortalecimento Institucional e Políticas Estruturantes. Neste último, proporcionou ao Programa Terra a Limpo BNDES/Fundo Amazônia recursos para diárias e combustível em  ações de regularização fundiária do Intermat e Incra no bioma Amazônia, resultando na entrega de 9.832 títulos definitivos em 3 glebas e 96 assentamentos federais e 21 estaduais e 160 títulos originados de terras devolutas.

Em conversa com o presidente do ITERPA – Bruno Kono, ele disse que o ponto de conexão para garantir a conservação ambiental e da agricultura familiar (de baixo carbono e bioeconomia) é a regularização fundiária. Com isso é possível criar vínculo jurídico com a propriedade e, por meio das informações dela, aplica os mecanismos de conservação, os instrumentos econômicos ambientais (por exemplo, pagamento por serviços ambientais) e o financiamento da assistência técnica pela EMATER.

Um exemplo da necessidade dessa integração conforme abordado por Kono, em Mato Grosso foi criado o instrumento da Regularização Onerosa Especial com a publicação do Decreto 146/2019, regulamentador do código de terras estadual atualizado após quase 40 anos. Essa modalidade de regularização fundiária permite ao ocupante de boa fé receber do estado título definitivo de área 100% preservada.

Antes deste instituto a secretaria de meio ambiente não permitia o manejo da área por não ter título e nem o instituto de terras titulava por não haver exploração. Na prática, o próprio estado forçava o ocupante a desmatar e construir uma estrutura básica de casa, curral e plantação para provar a exploração como requisito para titulação para depois tentar o manejo. Isso inviabiliza qualquer cidadão a preservar sua área sem falar que a titulação demorava até 8 anos.

Mas em relação a isso faço a seguinte provocação: será que o estado não poderia destinar essas áreas à uma companhia estatal, nos moldes do Pará, para fornecer créditos de carbono? Fica a proposta.

ELDER COSTA JACARANDÁ é advogado público do Instituto de Terras de Mato Grosso (Intermat), especialista em Direito Notarial e Registral pela Escola Paulista de Direito e em Regularização Fundiária pela UFMT, assessor técnico do Programa Terra a Limpo – BNDES /Fundo Amazônia, ex oficial de registro civil concurso TJCE/2010, ex-membro da Comissão de Regularização Fundiária e de Registros Públicos da CGJMT, coautor do artigo A Importância do Cartório de Registros de Imóveis na Regularização Fundiária Rural da obra “Regularização Fundiária – Experiências Regionais” publicada pelo Senado Federal.

Fonte: geocracia.com

Uma resposta

  1. Será que não pode o próprio Estado ser o credor dos créditos de carbono de suas áreas devolutas? Das áreas ainda não totalmente identificadas na origem? Oras, as Sesmarias não confirmadas não é de particular. Qual a dificuldade de provar se foi confirmada ou não? Será preciso exames de carbono 14 nos documentos? Será preciso recorrer às pesquisas científicas quem quiser se intitular dono de área pública. Porque o Brasil por conta do “descobrimento” é área pública. Os destaques para os particulares cientificamente comprovados, continuem com os particulares. O que o Estado não pode é se permitir perder a oportunidade de receber investimentos porque o particular não consegue provar que sua sesmaria não tem origem comprovada. Nesses casos o capital deve entrar e no bolso do Estado. Até porque a facilidade de receber para não fazer nada, deixar muitos a mata em pé, pode causar um verdadeiro descompromisso com a produção de alimentos. Há em verdade que haver preocupação em industrializar de forma sustentável o que temos. Vai ser bom demais pagar para regularizar a terra, pagar pouco pelo Título e viver de rendas de crédito de carbono. O Estado que não fique esperto para ele ser o detentor do crédito!

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