‘Política de ordenamento territorial deveria ter participação da sociedade’. Por Gabriel Pansani Siqueira.

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Gabriel Siqueira, diretor-presidente do Instituto Governança de Terras, defende fortalecimento da agenda e a criação de um cadastro de imóveis rurais integrado e eficaz

Foto: Divulgação

A governança de terras é o conjunto de regras, processos e instituições de um país que determina o acesso e o uso do território. Para que seja eficaz, é preciso garantir os direitos dos ocupantes legítimos de uma dada parcela de terra e segurança jurídica para implementação das políticas fundiárias, quesito em que o Brasil ainda é frágil.

Gabriel Siqueira, diretor-presidente do Instituto Governança de Terras (IGT) e colíder da Força-Tarefa (FT) Fundiária da Coalizão Brasil, afirma nesta entrevista para o boletim que o Brasil precisa de políticas mais estruturantes e participativas sobre o tema, além de um cadastro nacional de imóveis rurais e urbanos eficaz, que não deixe dúvidas sobre a propriedade de cada território.

“A política de ordenamento territorial deveria ser abrangente, com participação pública e social mais forte e ampla, porque deveria ser a sociedade brasileira a decidir o que fazer com o nosso território.”

Confira os principais trechos da entrevista:

O que é governança de terra e qual o cenário no Brasil? 

É um conceito que envolve o relacionamento das pessoas e das instituições com o território – onde estamos pisando, onde as casas estão construídas, árvores estão plantadas, e assim por diante.

Existem dois grandes pilares que pautam a discussão em torno desse tema, que são a geolocalização de uma parcela específica de terra e os direitos associados a ela, sejam eles privados, públicos ou coletivos. Existe até uma norma, a ISO 19.152, um padrão internacional que tenta pautar a administração de terras de um determinado país considerando esses dois eixos.

Tem ainda um terceiro pilar, que é a estrutura institucional. Cada país, obviamente, tem soberania para determinar suas regras de uso e ocupação do solo e ordenamento territorial, e essa estrutura é que vai regulamentar todas as situações. O problema no Brasil é que o componente institucional é muito mutável. Essa instabilidade institucional acaba contribuindo para a confusão fundiária que existe no país.

Muitos problemas enfrentados na Amazônia, principalmente no Mato Grosso e no Pará, envolvem concessões ou títulos que foram dados dentro de arcabouços institucionais da época, como programas de colonização da década de 70, que não tinham amarração geoespacial e/ou legal muito forte e, sem isso, fica difícil identificar quem é de fato o dono ou quem tem responsabilidades e direitos sobre aquela parcela de terra.

Sobre a regularização fundiária, como está essa discussão atualmente? Como ela deveria avançar?

A regularização fundiária é um jeito de legitimar “o que é de quem e onde”, e existem diferentes formas de fazer isso. Dependendo do tipo de problema ou de conflito, você terá um caminho para obter esse reconhecimento formal dos seus direitos sobre uma parcela específica inequívoca do território. É isso, essencialmente, que se busca na regularização fundiária.

Infelizmente, às vezes ela acaba tomando mais atenção do estado brasileiro do que políticas mais estruturantes, como a construção de um cadastro nacional ou até políticas transparentes e participatórias de um ordenamento territorial. Precisamos ter um cadastro nacional dos imóveis rurais e urbanos do Brasil, um mapa que traga essas informações com segurança e clareza e que seja sistematicamente atualizado.

Como deveriam ser as políticas públicas voltadas ao ordenamento territorial?

Deveria ser abrangente, com participação pública e social mais forte e ampla, porque deveria ser a sociedade brasileira a decidir o que fazer com o nosso território. Por exemplo, algumas áreas do país têm certa prioridade para serem protegidas, outras têm potencial produtivo. E, no Brasil, temos uma grande massa de áreas públicas ainda não destinadas, que ainda não receberam uma destinação correta ou oficial. Não se sabe exatamente qual será o perfil de sua ocupação.

Quem fazia um trabalho muito interessante nesse sentido era o “Terra Legal”, um programa nacional que aconteceu de 2009 até 2018, e reunia especialistas do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), do Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar (MDA). Eles referenciavam grandes levas de florestas públicas, visitavam essas glebas para verificar se já existia algum título emitido no passado e que poderia causar sobreposição. Apuravam se existiam comunidades tradicionais ou indígenas vivendo ali e se nenhuma outra instituição pública brasileira tinha interesse naquela área. Havia a Câmara Técnica de Destinação, que trazia um pouco mais de segurança no processo de ordenamento territorial.

Observamos o MDA reestruturando essa câmara técnica, porém, ainda sem a garantia da participação social ou assentos exclusivos para representantes da sociedade civil e sem transparência dos resultados das reuniões que realizam. Acredito que a academia, técnicos e outros especialistas podem contribuir bastante nesse processo com uma visão um pouco mais imparcial sobre as formas de uso e ocupação do solo, ainda que seja difícil conciliar os variados interesses sobre o mesmo patrimônio, que é a terra.

Qual foi o objetivo do 9º Seminário Internacional Governança de Terras e Desenvolvimento Econômico, realizado pelo IGT em outubro, e seus principais resultados?

O seminário nasceu com o objetivo de criar um espaço para trazer governo, sociedade civil, empresas e academia para conversar em um ambiente seguro, tranquilo e transparente. Neste ano, um grande resultado foi ver o que o Incra está fazendo para reestruturar o cadastro nacional rural, a partir da ISO 19.152 (Land Administration Domain Model – LADM), um padrão internacional de gestão de terras.

O Incra tem mais de um cadastro, e aquele que consideramos melhor é o Sigef (Sistema de Gestão Fundiária), porque amarra informações registradas em cartório com dados geoespaciais certificados por um técnico ou credenciado do instituto. Mas, como são consideradas apenas as informações registradas em cartório, uma série de comunidades tradicionais, ribeirinhas e periféricas fica de fora, além de outras formas legitimas de direito à terra.  Discutimos com eles sobre como ampliar e melhorar esse sistema, para que ele de fato reflita a realidade e mostre o que está acontecendo nos territórios, nas diferentes formas de direitos e escalas de identificação geoespacial.

Um segundo resultado foi a elaboração de duas moções de apoio nosso (pela criação de uma Política Nacional de Governança de Terras e pelo desenvolvimento de um Cadastro Nacional Rural) para essa agenda dentro do Incra e do MDA.

Depois do seminário, estava prevista a realização de uma oficina com instituições públicas para discutir a integração de dados e cadastros.

Sim. Fizemos uma reunião com representantes das instituições públicas que produzem dados geoespaciais para, novamente, promover o diálogo entre essas organizações. Não há como uma instituição dar uma finalidade e função para uma parcela específica do território sem que haja uma comunicação transparente com outros entes públicos que podem ter a mesma atribuição para o mesmo território. A ideia é chegar a um acordo comum para centralizar as informações. Não estamos falando em centralizar tomadas de decisões ou a agenda de destinação de terras, mas de centralizar as informações. É ter uma agência responsável por construir o quebra-cabeça do território e, caso haja sobreposições, que gere algum alerta ou relatório.

Como essas discussões sobre governança de terras refletem na Coalizão?

O tema reverbera em quase todas as discussões. A FT Rastreabilidade e Transparência está desenvolvendo soluções interessantes, e a FT Mercados de Carbono tem uma agenda muito estratégica. Mas se não se sabe de quem é a terra e onde ela fica, não há como garantir, por exemplo, para quem vão os royalties pelo crédito de carbono. Tudo está conectado pela terra. O dia em que tivermos um ordenamento territorial bem feito, tudo caminhará de forma mais fácil: créditos de carbono, rastreabilidade, ativos florestais não madeireiros da bioeconomia. A pauta fundiária é transversal a praticamente todas as outras forças-tarefa.

Como a FT Fundiária pode contribuir para a pauta da regularização fundiária no Brasil?

Coalizão Brasil poderia, por exemplo, endossar essas duas moções de apoio que fizemos durante o seminário. Estamos vendo uma série de esforços do MDA e do Incra para tentar avançar nessa agenda, e seria o caso de dialogar com essas instituições e questionar como a sociedade civil pode ajudar. Poderia, ainda, fazer advocacy por mais transparência nas decisões de ordenamento territorial e pelo cadastro, entendendo sempre que é uma discussão de longo prazo.

GABRIEL PENSANI SIQUEIRA é Bacharel em Gestão Ambiental pela ESALQ/USP (2015), com experiências em Assentamentos Rurais no interior do estado de São Paulo (Antropologia Rural) e desenvolvimento de projetos agrícolas (setor sócio-economico), estagiário da empresa 4iGreen/Vigna colaborando com projetos internacionais. Experiência de intercâmbio na Austrália como bolsista pelo programa Ciências sem Fronteiras. Atualmente (2016) atuando como pesquisador no Grupo de Governança de Terras da UNICAMP, sob orientação do Dr. Prof. Bastiaan P. Reydon e Diretor-presidente do Instituto Governança de Terras desde sua fundação em 2019

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